“O avanço da inteligência artificial desafia os conceitos tradicionais de autoria e proteção autoral, exigindo novas interpretações jurídicas, padrões de transparência e diretrizes administrativas que garantam segurança jurídica à criação humana.”
O advento da inteligência artificial generativa tem remodelado de forma decisiva os processos de criação artística, literária e audiovisual. Modelos algorítmicos passaram a desempenhar funções que antes eram exclusivamente humanas, permitindo a produção integral ou parcial de obras complexas e tensionando os fundamentos tradicionais do regime jurídico de autoria e titularidade.
Nesse novo ecossistema criativo híbrido, dinâmico e profundamente influenciado por sistemas treinados em larga escala, surgem desafios imediatos quanto à identificação da contribuição humana, à extensão da proteção autoral e à definição dos critérios de registro de obras produzidas com apoio de IA.
Tais questões alcançam diretamente o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e as demais instituições de tutela cultural, que se veem diante da necessidade de interpretar e adaptar estruturas jurídicas concebidas em outro contexto tecnológico para garantir segurança jurídica, previsibilidade e proteção adequada à criatividade humana na era da inteligência artificial.
1. Marco Legal dos Direitos Autorais no Brasil
A Lei nº 9.610/98 estabelece que apenas pessoas naturais podem ser consideradas autoras, reforçando o caráter humano da criação intelectual. Esse entendimento é reiterado pela Convenção de Berna e encontra paralelo em sistemas estrangeiros, como o do Copyright Office dos Estados Unidos, que condiciona a proteção autoral à existência de uma contribuição criativa substancial realizada por um ser humano.
Desse modo, ainda que a obra seja produzida com apoio de ferramentas de inteligência artificial, sua proteção dependerá da efetiva intervenção humana, seja na concepção, na direção criativa, na seleção dos resultados ou na edição final. A tutela jurídica permanece automática desde o momento da criação, independentemente de registro, embora o registro continue recomendável como instrumento de prova de autoria, anterioridade e individualização do processo criativo.

2. Autoria Assistida por Inteligência Artificial
Nas situações em que a inteligência artificial opera como ferramenta de apoio, prevalece o entendimento de autoria assistida. Nesses casos, o criador humano, responsável por definir os prompts, orientar o modelo, selecionar os outputs ou editar o resultado, é reconhecido como o autor da obra, já que a intervenção criativa permanece sob sua direção e controle.
A ampliação da autonomia dos sistemas generativos, contudo, tem introduzido zonas de incerteza. Quanto menos verificável ou mensurável a contribuição humana, maior a dificuldade de enquadramento jurídico, sobretudo na avaliação do grau de originalidade e da extensão da criatividade efetivamente atribuível à pessoa natural. Nesse cenário, ganham relevância debates doutrinários sobre:
• critérios objetivos para aferição da criatividade humana, especialmente em processos parcialmente automatizados;
• exigência de transparência no uso de IA, com registro dos instrumentos técnicos, parâmetros e intervenções;
• distinção normativa entre ferramentas assistivas e ferramentas plenamente generativas, a fim de delimitar de forma clara o alcance da proteção autoral.
É igualmente importante destacar que a doutrina internacional, bem como as autoridades estrangeiras de registro autoral, tem rejeitado o reconhecimento da IA como coautora. O consenso atual reforça que a proteção autoral acompanha a ação criativa humana — e não o funcionamento autônomo do algoritmo.
3. Obras 100% Geradas por IA: Domínio Público Imediato
Com base em entendimentos consolidados internacionalmente, obras produzidas sem qualquer contribuição criativa humana, inteiramente geradas por IA, não são elegíveis à proteção autoral. Por consequência:
• são automaticamente classificadas como domínio público ab initio;
• podem ser utilizadas, reproduzidas e derivadas livremente;
• impõem novos desafios à economia da cultura, especialmente à remuneração dos criadores humanos.
Essa realidade tem impacto direto no mercado fonográfico, audiovisual e editorial, que já observa práticas de exploração econômica de conteúdos gerados puramente por IA.

4. Registro de Obras com IA no INPI: Desafios Emergentes
Com base em entendimentos consolidados no cenário internacional, obras produzidas sem qualquer contribuição criativa humana, isto é, inteiramente geradas por sistemas de inteligência artificial, não são elegíveis à proteção autoral. Trata-se de posicionamento adotado por diferentes autoridades estrangeiras, que vinculam a tutela jurídica à presença indispensável de um ato criativo humano.
Por consequência:
• são automaticamente classificadas como domínio público ab initio, uma vez que não atendem ao requisito de autoria humana;
• podem ser livremente utilizadas, reproduzidas, adaptadas e exploradas, sem necessidade de autorização ou pagamento de direitos;
• geram desafios significativos para a economia da cultura, especialmente no que se refere à remuneração adequada dos artistas, autores e demais profissionais cujas obras humanas competem com conteúdos gerados por IA.
Essa realidade já produz impacto direto nos mercados fonográfico, audiovisual e editorial, que vêm registrando práticas crescentes de exploração econômica de conteúdos criados exclusivamente por IA, muitas vezes em escalas industriais e com custos praticamente marginais.
5. Riscos Éticos, Culturais e Socioeconômicos
Diretrizes internacionais — especialmente a Recomendação da UNESCO sobre Ética da Inteligência Artificial, enfatizam que a tecnologia não é neutra: seus impactos são condicionados pelas escolhas humanas envolvidas em sua concepção, treinamento e aplicação. No campo cultural, esse alerta se torna ainda mais relevante, pois a IA generativa opera sobre acervos, identidades e práticas simbólicas que compõem a diversidade cultural.
Nesse cenário, destacam-se riscos amplamente reconhecidos pela literatura especializada e pelas políticas globais de governança da IA:
• uso não autorizado de obras humanas em bases de treinamento, frequentemente sem transparência sobre origem, licenciamento ou consentimento;
• replicação não consentida de estilos artísticos, que fragiliza a proteção moral do criador e obscurece a origem humana da expressão estética;
• produção de deepfakes envolvendo imagem, voz ou marcas identitárias, com potenciais danos pessoais, reputacionais e culturais;
• opacidades sobre direitos conexos, especialmente no audiovisual, fonográfico e no setor de dublagem, onde performances humanas podem ser imitadas ou substituídas por modelos sintéticos;
• substituição ou descaracterização do trabalho criativo, muitas vezes sem garantias trabalhistas, mecanismos de compensação ou salvaguardas éticas mínimas.
As mobilizações recentes, como a greve da WGA/SAG-AFTRA nos Estados Unidos e a campanha brasileira “Dublagem Viva”, evidenciam que o setor cultural percebe a IA generativa não apenas como ferramenta de apoio, mas também como vetor de riscos estruturais. Essas iniciativas reforçam a urgência de políticas públicas, normas éticas e marcos regulatórios que assegurem transparência, remuneração justa e preservação dos direitos culturais frente à automação criativa.
6. Propostas e Perspectivas Regulatórias
O enfrentamento desses desafios requer uma atuação coordenada entre o legislador, os órgãos de tutela cultural e as instituições responsáveis pelo registro e pela preservação da memória intelectual. Para assegurar segurança jurídica, transparência e proteção efetiva da criatividade humana na era da IA generativa, são recomendáveis as seguintes medidas:
✔ Criação de diretrizes administrativas específicas para obras assistidas por IA
Estabelecendo critérios objetivos para aferir o grau de intervenção humana, especialmente no que diz respeito à seleção, curadoria, edição e direção criativa do output, de modo a permitir a adequada qualificação autoral e evitar registros indevidos de obras puramente sintéticas.
✔ Inclusão de campos obrigatórios para declaração de uso de IA nos formulários de registro
Aprimorando os mecanismos de transparência e rastreabilidade, em conformidade com princípios éticos internacionais (como a Recomendação da UNESCO). Esse procedimento permitiria identificar a natureza da contribuição humana e garantir segurança aos titulares e aos usuários posteriores.
✔ Elaboração de guias técnicos conjuntos entre INPI, Biblioteca Nacional e Ministério da Cultura
Visando harmonizar procedimentos administrativos, padronizar critérios de avaliação técnica e evitar disparidades interpretativas entre instituições que exercem funções complementares no ecossistema autoral. Essa cooperação institucional fortalece a governança cultural e reduz zonas de incerteza.
✔ Harmonização das práticas administrativas com o PL 2.338/23 (Marco Legal da IA)
De modo a assegurar que os aspectos autorais, culturais e éticos sejam contemplados na implementação futura do marco regulatório. A compatibilização entre o regime de direitos autorais e as regras sobre sistemas de IA é indispensável para preservar a criatividade humana, garantir accountability e proteger a diversidade cultural
7. Legislação Aplicável
A análise jurídica das obras geradas ou assistidas por inteligência artificial deve observar, prioritariamente:
• Lei nº 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais): principal diploma regulador da proteção autoral no Brasil, que estabelece os critérios de autoria, titularidade, proteção e limitações dos direitos autorais. Exige, ainda, que o autor seja pessoa natural, o que reforça a centralidade da intervenção criativa humana em obras envolvendo IA.
• Lei nº 9.279/96 (Lei da Propriedade Industrial): embora voltada à proteção de patentes, marcas e desenhos industriais, incide também sobre programas de computador e pode alcançar softwares utilizados em processos de criação automatizada, especialmente no que diz respeito a algoritmos proprietários.
• Lei nº 12.965/14 (Marco Civil da Internet): disciplina o uso da internet no Brasil, com impactos sobre responsabilidade de intermediários, guarda de registros, proteção de dados e moderação de conteúdo — questões diretamente relacionadas à distribuição e uso de obras geradas por ferramentas de IA.
• Convenção de Berna (1886): tratado internacional que rege os direitos autorais nos países signatários, incluindo o Brasil, e reforça o princípio da proteção automática das obras desde sua criação, além de assegurar padrões mínimos de tutela aos autores humanos.
• TRIPS – Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio: acordo internacional no âmbito da OMC que impõe padrões mínimos de proteção aos direitos de propriedade intelectual, incluindo direitos autorais, influenciando a interpretação nacional em matéria de originalidade e titularidade.
Esse conjunto normativo fornece fundamento para a proteção da autoria humana, mas ainda necessita ajustes diante das peculiaridades da IA generativa.
Conclusão
A inteligência artificial inaugura uma nova era para o direito autoral, exigindo atualização institucional, clareza regulatória e compromisso ético. O desafio central é equilibrar o reconhecimento da criatividade humana com a segurança jurídica necessária ao desenvolvimento tecnológico.
O INPI desempenha papel estratégico nesse processo: ao estabelecer diretrizes claras, fortalecerá a confiança dos criadores e consolidará um sistema de registro compatível com a complexidade das obras contemporâneas.
A maturidade desse diálogo definirá se o direito autoral será capaz de acompanhar e orientar as transformações que moldam o futuro da criação cultural.
“Este artigo foi elaborado com base na Lei nº 9.610/98, na legislação conexa aplicável, nas diretrizes do INPI e em análises comparativas de sistemas jurídicos estrangeiros, incluindo entendimentos recentes do Copyright Office dos Estados Unidos e orientações internacionais sobre o uso ético da inteligência artificial. As reflexões apresentadas têm caráter informativo e acadêmico. Recomenda-se avaliação jurídica individualizada para casos concretos, considerando as particularidades fáticas, tecnológicas e normativas de cada situação.”
Sobre o Autor
Dr. Abrahão Neto é advogado especializado em Direito Civil, Bancário, Digital, Propriedade Intelectual e Automação Jurídica, com foco em IA aplicada à advocacia, ética profissional e inovação tecnológica.
É criador e presidente da Comissão de Direito Digital, Marketing Jurídico e Inteligência Artificial da OAB Marabá (PA). Integra a comunidade Superinteligência Jurídica, liderada por Dr. Marcílio Guedes Drummond, referência nacional em Engenharia Jurídica de Prompts.
É idealizador do projeto “GPT-Jurídico Builder” (Engenheiro de Prompts), destinado à criação e auditoria de assistentes jurídicos personalizados, baseados nas metodologias L.O.U.S.A. e IRAC/CRAC, com integração aos sistemas n8n e Z-API.
“Advogar é pensar com método, agir com ética e inovar com propósito.”
Dr. Abrahão Neto – OAB/PA 35865
